sexta-feira, 27 de novembro de 2009

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Lotação de vida

O final da Linha Auxiliadora da lotação é o início de um novo itinerário de vida. Uma casa pequena é onde Dagoberto, o largador, trabalha, e Nelson, seu ajudante e “filho adotivo”, dorme. Conversando com eles, conheci um pouco da história da lotação, e duas histórias que se uniram: as deles.
Acostumada a pegar ônibus para andar por Porto Alegre, hoje embarco numa viagem no mundo da lotação. Entrando pela única porta de numa casinha de tijolos à vista, de nem 4m², em frente ao final da Linha Auxiliadora, na Praça Alberto Ramos, ganho minutos de papo com quem controla os horários da e, assim, conheço histórias que vão além do veículo.
Foi distraindo Alfredo Dagoberto Scheinwenzel, de 64 anos, largador da linha há 23, que descobri o que essa construção abriga: uma mesa com listas telefônicas, livros, papeis e um radinho. Prateleiras e cartazes nas paredes – um deles anuncia o prêmio da loteria. No chão, algumas sacolas. E uma cadeira.
Sobre a mesa há também uma prancheta, com as folhas dos horários de saída das lotações, lápis e borracha. Os materiais de trabalho de Dagoberto.
Para trabalhar
Antes de assumir na Linha Auxiliadora, ele passou por bancos, escritórios, Correios e Telégrafos. A relação com os transportes começou em 1983, quando iniciou como taxista. Primeiro, dirigindo durante o dia. No ano seguinte, tentou durante a noite. Não deu certo. O principal problema eram as prostitutas: elas só queriam pagar com serviços. Desistiu.
Em 1982 Alfredo Dagoberto comprou a primeira Kombi para transportar produtos de higiene para as praias, intercalando os turnos do táxi e do novo negócio. Hoje, não há como intercalar. São treze horas diretas, sem intervalo para o almoço. A rotina de controlar os horários, anotar saída e chegada dos oito carros começa às 6h.
Durante esses 23 anos de serviço, viveu mudanças positivas ou negativas. A melhoria nos veículos, com aumento da capacidade e a criação da linha Auxiliadora/Iguatemi, em 1993, foram benéficas, trazendo maiores lucros e organização.
Já a criação do cartão eletrônico da passagem reduziu as vantagens. Duas fichinhas de ônibus eram aceitas nas lotações. Dagoberto vendia-as pelo preço normal, pegando a diferença como lucro. O maior conforto nos ônibus aumentou a concorrência, colaborando para a redução de 30% a 40% de passageiros.
Por falar neles, Dagoberto diz que a maioria na Linha Auxiliadora é de classe média-alta:
–Com um agravante: eles são mais mal educados. Talvez por ser de classe média alta, terem mais estudos.
Ele diz que dá para perceber, não só na simpatia:
–Normalmente, o passageiro de classe média baixa pede, o outro, exige. Outro exemplo que te dou é, o outro te apresenta na primeira volta da manhã - esse é só um fato irrisório - uma nota de R$ 50 sabendo que o motorista não tem muitas notas. Se ele der pra ti ele não vai ter para outros. Já o outro já vem com R$10 e R$5.
E ele ainda repara que isso ocorre da rua Cel. Bordini em diante.
Para morar
Não é apenas o afazer de Dagoberto que essa pequena casa guarda. Nas noites, ela abriga Nelson Luís Evangelista , de 33 anos, que morava em Gravataí com a família, mas aos 10 saiu de casa. Ele é o mais velho de oito irmãos. O pai não o visita. Quem, de vez em quando, vem vê-lo é sua mãe.
Ele não fala muito sobre a família. Ao questionar Nelson sobre os motivos que o levaram a abandonar a casa, responde:
– Ah, saí por que não se dava bem lá!Aí eu vim pra cá e fiquei aqui com ele!
“Ele” é Dagoberto, que acompanha a nossa conversa, corrigindo detalhes da vida do seu colega nas tarefas diárias. Para Dagoberto, ele é um companheiro de itinerário, um filho adotivo. Naturais são dois. Netos, quatro. A todos eles incentivou a algo que ele próprio não fez: estudar. Ele estudou no Rosário, mas parou por achar mais interessante trabalhar e ganhar dinheiro.
Acompanhando de perto
Um acidente interrompeu os estudos de Nelson aos oito anos de idade. Ao tentar atravessar a Rua 24 de outubro, em frente à Igreja Auxiliadora, ele foi atropelado por uma Kombi escolar. A batida da cabeça na calçada obrigou-o a tomar Gardenal por anos. Sequelas do tratamento: o aprendizado é mais complicado.
Um incidente provocou o afastamento do colégio. Ainda na primeira série do Ensino Fundamental, Nelson tentou matar a professora com uma tesoura. A direção o colocou em uma turma para crianças com problemas mentais. Desestimulado, desistiu.
Anos depois, em 1995, o pai adotivo conseguiu um professor para dar aulas particulares a Nelson duas vezes por semana, mas ele não ia. O que Nelson sabe agora é fruto da observação do trabalho de Dagoberto: não lê nem escreve, mas desenha números.
Ele é o “faz-tudo” para os motoristas das lotações e dos funcionários das linhas 431-Carlos Gomes e 510- Auxiliadora, que têm ponto final na mesma praça - paga contas, vai à lotérica, faz compras.
Nas folgas nos finais de semana, vai a algumas festas. Quando pergunto das namoradas, recebo gargalhadas e a resposta de que tem uma namorada que mora na Mathias Velho. O namoro tem seis meses, conforme me confirma seu pai adotivo. Outra diversão é apitar jogos no Rosário, função que aprendeu apenas olhando partidas de várzea.
À noite, vem a mais importante missão: guardar a casa que o abriga. Apesar de pequena, ela é alvo de arruaceiros, que atiram pedras, quebrando os vidros. Ao falar sobre isso, reparo que duas janelas estão sem vidros, tapadas por papelões. Resultado das brincadeiras:
– Eu boto o radinho, o rádio, bem baixinho e eles sabem que tem gente aqui.– explica Nelson.
E ele gosta disso. Gosta de tudo. Sempre com um sorriso no rosto, ele diz que a casinha é boa e dá pra dormir!.
E assim largo da casinha na Praça Alberto Ramos onde, mais do que o final da Linha Lotação Auxiliadora, ela é o refúgio de duas vidas lotadas de histórias, acontecimentos e, principalmente, compartilhadas - seguindo um mesmo itinerário.

Matéria publicada na revista Sextante 2009/1